No apagar das luzes de 2022, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou uma nova projeção para a população brasileira: 207,8 milhões de habitantes.
IBGE estimou população brasileira em 207 milhões, devido à população menor, 702 municípios esperam perder R$ 3 bilhões em repasses da União e prometem ir à Justiça
O dado — uma estimativa feita a partir do Censo ainda inacabado de 2022 —, chamou a atenção por ser mais de 7 milhões inferior à projeção populacional de 215 milhões de habitantes, feita pelo próprio IBGE, com base na última edição do Censo, de 2010.
O número menor do que a projeção já era esperado, devido à pandemia, à migração de brasileiros para o exterior e à gradativa redução no número de nascimentos. O fato de a projeção estar 12 anos distante do último Censo e de não ter sido realizada uma contagem populacional prevista para 2015, também contribuem para a discrepância entre os números.
Mas, após a publicação do dado, técnicos do IBGE afirmam que o número pode estar subestimado e revelam que sua divulgação foi controversa dentro do próprio instituto.
"Fizeram uma conta de padaria com base no que já está feito no Censo, mas o método é bem duvidoso, teve bastante discordância sobre isso", relata um técnico do IBGE que conversou com a BBC News Brasil sob condição de anonimato.
"Isso é uma invenção, nenhum país no mundo faz o que eles fizeram", diz outro técnico.
"Vejo com muita preocupação. Primeiro, porque foi uma metodologia que nunca foi aplicada em lugar nenhum do mundo. É aquilo que a gente chama de uma jabuticaba", afirma.
"E pior: estão usando duas metodologias diferentes para tratar entes federados, que são os municípios, de mesmo porte populacional. Então vai ter município que o resultado dele é o Censo e município que o resultado é uma estimativa. Ninguém vai ficar satisfeito e isso vai gerar ações na Justiça", acrescenta este segundo técnico.
"Então há um aspecto legal insustentável e um aspecto metodológico também muito frágil."
Cimar Azeredo, presidente interino do IBGE, afirma que as críticas não procedem, que o instituto tem muita transparência em seus processos, seguindo à risca os princípios fundamentais das estatísticas oficiais.
Ele afirma ainda que os dados foram discutidos com os técnicos, submetidos a uma comissão consultiva composta de 13 membros e que são a melhor informação possível, se comparada com os dados populacionais projetados a partir do Censo anterior, por apresentarem maior grau de acuidade.
Menos dinheiro para municípios
Poderia ser apenas uma discordância entre visões técnicas distintas, mas a contagem populacional tem consequências práticas. Isso porque municípios que perdem população passam a receber menos dinheiro do governo federal.
Ao fim de todos os anos, por obrigação legal, o IBGE encaminha ao TCU (Tribunal de Contas da União) a relação da população de cada um dos municípios brasileiros. Os dados são usados para calcular as quotas do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) para o ano seguinte.
Pelas regras do fundo, Estados e Distrito Federal recebem 22,5% da arrecadação do IR (Imposto de Renda) e do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Esse valor então é distribuído aos municípios, de acordo com o número de habitantes.
O repasse é estabelecido com base em faixas populacionais e as diferentes faixas têm direito a valores maiores quanto maior a população.
Assim, se um município perde população e, com isso, muda de faixa, ele acaba perdendo recursos. Isso afeta particularmente os municípios menores, que têm populações pequenas demais para gerar arrecadação própria e têm no FPM sua principal fonte de receita.
A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima que 702 municípios perderão recursos com base na estimativa populacional da prévia do Censo, somando mais de R$ 3 bilhões. Os Estados com mais municípios impactados são Bahia (99), Minas Gerais (83) e São Paulo (72).
Por que municípios vão à Justiça
Em anos em que não há Censo, o IBGE envia ao TCU, para o cálculo das quotas do fundo, a população dos municípios com base na projeção populacional. Em 2022, no entanto, com o Censo ainda incompleto, o instituto optou por uma imputação a partir dos dados parciais da pesquisa.
A CNM argumenta que os municípios estão protegidos por uma lei (Lei Complementar 165/2019) que, na interpretação da entidade, determinou o congelamento dos coeficientes do FPM para perdas até a finalização do Censo.
O texto da lei, contudo, não fala explicitamente em "finalização", mas apenas "até que sejam atualizados com base em novo censo demográfico". O TCU considerou que o IBGE enviou informações com base no novo Censo e, por isso, recalculou as quotas do fundo, com perdas para os municípios que tiveram redução de população.
Por discordar dessa interpretação, a CNM está recomendando que todos os municípios afetados recorram no TCU. Alguns deles já contestam a decisão do órgão na Justiça, tendo recebido liminares favoráveis, segundo a entidade representativa.
"O governo não fez a recontagem populacional em 2015, não fez o Censo em 2020 e 2021. Foi fazer agora, de maneira muito claudicante. Isso soa para nós como uma irresponsabilidade total do governo, que não cumpre a lei", diz Paulo Ziulkoski, presidente da CNM.
"Já temos liminares suspendendo isso daí [a decisão do TCU] e olha a confusão que vão armar no Brasil. A cada município que tiver uma liminar concedida, será necessário recalcular a quota dele e de todos os demais. Uma quota de um município mexe em toda a estrutura do Estado inteiro", alerta Ziulkoski.
A BBC News Brasil pediu um posicionamento ao TCU quanto às críticas da CNM. O tribunal respondeu que "eventuais contestações que vierem a ser apresentadas pelos municípios ao Tribunal de Contas da União serão naturalmente avaliadas pela Corte, como ocorre em todos os anos, nos termos de sua Lei Orgânica e do seu regimento interno. Esses questionamentos serão analisados somente em relação ao cálculo e não às estatísticas utilizadas, que são da competência do IBGE e, por definição legal, o TCU não possui qualquer ingerência."
O atraso no Censo que levou a esse imbróglio
Programado para acontecer em 2020, o Censo teve de ser adiado por conta da pandemia de covid-19. Em 2021, sofreu novo adiamento, por falta de orçamento — mais de 90% da verba prevista foi cortada na tramitação da lei orçamentária no Congresso.
Censo perde 90% da verba e IBGE diz que corte torna pesquisa inviável
Após determinação do STF (Supremo Tribunal Federal), o governo federal liberou R$ 2,3 bilhões para realização da pesquisa, 26% menos que os R$ 3,1 bilhões inicialmente previstos.
Técnicos e ex-presidentes do IBGE alertaram à época que o valor seria insuficiente, mas a diretoria do instituto — então sob a presidência de Susana Cordeiro Guerra, indicada de Paulo Guedes para o cargo — tomou medidas como reduzir o questionário e seguiu com o Censo assim mesmo.
A pesquisa em campo teve início em agosto de 2022, com previsão de ir até o fim de outubro. Com dificuldade para contratar recenseadores devido à baixa remuneração, o término da coleta foi adiado para o começo de dezembro, depois para o fim do ano, novamente para janeiro e, agora, o instituto já cogita esticar a pesquisa até fevereiro.
Diante dos sucessivos adiamentos, o IBGE chegou ao fim de 2022 — quando tem a obrigação legal de encaminhar ao TCU a relação da população de todos os municípios brasileiros — sem os números finalizados do Censo. Com cerca de 84% da população recenseada até 25 de dezembro, o órgão de pesquisa optou por divulgar uma "prévia do Censo", estimativa feita a partir dos dados já coletados.
'207 milhões é pouco', diz demógrafo
Não são apenas os técnicos do IBGE que questionam os 207 milhões de habitantes divulgados pelo instituto na prévia do Censo. O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE, também considera o número baixo e avalia que o resultado pode sinalizar problemas de cobertura do Censo.
Para embasar sua opinião, Eustáquio cita os dados de nascimentos e óbitos do Ministério da Saúde. Entre agosto de 2010 e julho de 2022, período de referência entre os dois Censos, nasceram 34,4 milhões de crianças e morreram 16 milhões de pessoas, o que resulta em um crescimento vegetativo da população de 18,3 milhões, diz o demógrafo.
Como a população em 2010 era de 190,8 milhões, conforme a edição do Censo daquele ano, seriam 209 milhões de pessoa em 2022, considerando apenas o crescimento vegetativo.
Com informações da BBC Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário