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Alvo da investigação da CPI da Covid, a maneira como os Estados aplicaram a maior parte dos recursos enviados pelo governo federal como socorro financeiro na pandemia é ainda uma incógnita. A fatia mais robusta do auxílio federal era para livre destinação, não atrelada automaticamente a gastos com saúde, e cada governador deu o próprio encaminhamento. Procurados pelo Estadão, apenas dez informaram a aplicação das respectivas parcelas, de um total de R$ 37 bilhões transferidos.
Embora em alguns casos o dinheiro não carimbado também tenha sido destinado ao combate direto à covid-19, a maior fatia do socorro teve finalidades alheias à pandemia. Conforme relataram as secretarias estaduais de Fazenda, o recurso serviu para pagamento de servidores de diversas áreas, garantir o 13.º salário e até para gastos de custeio da máquina pública.
O presidente Jair Bolsonaro usou o fato de os Estados aplicarem recursos federais para pagar salários e outras despesas como argumento para pressionar a favor da inclusão de Estados e municípios na CPI aberta no Senado. A ofensiva foi bem sucedida, mas agora Bolsonaro poderá ter de explicar a veracidade dos valores dos repasses que costuma publicar nas redes sociais para seus apoiadores usarem como artilharia contra os governadores, se isentando da responsabilidade pelo colapso do sistema de saúde nos Estados, falta de medicamentos, equipamentos e leitos de UTIs para as vítimas da doença. Essa deverá ser uma das linhas de ação da CPI, que deverá ter como relator o senador Renan Calheiros (MDB-AL), crítico de Bolsonaro no enfrentamento da doença.
“Dinheiro foi para Estados e municípios. Muito dinheiro, bilhões de reais, mas nós sabemos que muitos governadores e prefeitos usaram esse recurso para pagar folha atrasada, botar suas contas em dia, e não deram a devida atenção para a saúde”, disse Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo no início do mês.
Os bolsonaristas aproveitam os números do presidente para acusar os governadores não alinhados com o governo federal de desvio de recursos da covid-19. Apesar das insinuações de Bolsonaro, a lei complementar que gerou o socorro “carimbou” para a saúde apenas a menor parte do dinheiro. O auxílio financeiro foi criado, ainda em 2020, por iniciativa do Congresso, para aliviar perdas de arrecadação provocadas pela pandemia, que exigiu medidas de isolamento social para evitar o colapso do sistema hospitalar.
Ao todo, foram liberados R$ 60 bilhões para Estados (R$ 37 bilhões) e municípios (R$ 23 bilhões) - sendo R$ 10 bilhões carimbados para ações de saúde e assistência social, e o restante para uso livre dos entes subnacionais.
Os dez Estados que apresentaram ao Estadão (SP, RJ, ES, GO, RR, AL, PR, RS, SC e DF) algum detalhamento sobre a aplicação do auxílio receberam, juntos, R$ 3,1 bilhões para a saúde e R$ 16,3 bilhões para usar livremente, segundo dados do Tesouro Nacional.
Desse total, R$ 7,6 bilhões foram repassados a São Paulo. O governo de João Doria (PSDB) afirmou que usou parte dos recursos para “pagar salários de policiais e professores e cumprir seus contratos com fornecedores” e afirmou que não se trata de ajuda do governo federal. “A destinação, ao contrário do que pregam teses bolsonaristas, não pode ser encarada como ajuda do governo federal, mas sim uma obrigação prevista no princípio federativo de distribuição de recursos. A verba destinada aos Estados não pertence a governantes, correntes políticas ou ideologias. São recursos públicos do contribuinte para ações de interesse da população”, destacou o governo Doria, em nota.
No Rio de Janeiro, os R$ 2 bilhões livres recebidos serviram principalmente para pagamento de salários de policiais. Em Roraima, o governo decidiu repassar os R$ 147 milhões que não eram vinculados diretamente ao combate à covid para pagamento de salários dos próprios profissionais da saúde. “Tendo em vista a necessidade de aumento de pessoal, foi para complementação da folha de pagamento, só da saúde. Aumentou o gasto com pessoal por conta das necessidades desses profissionais, dos hospitais de campanha”, disse Marcos Jorge de Lima, secretário de Roraima.
O recebimento e a aplicação de repasses federais tornou-se tema ainda mais delicado depois que o governo federal inflou o tamanho das transferências em relatórios institucionais. A comunicação do governo incluiu as transferências constitucionais, obrigatórias, como iniciativa da gestão Bolsonaro para enfrentar a covid-19.
Rio Grande do Sul
A campanha do governo, que incomodou os governadores, virou desinformação contra os adversários de Bolsonaro. O chefe do Executivo do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), foi enganosamente acusado em postagens de bolsonaristas de desviar os cerca de R$ 2 bilhões do socorro financeiro para publicidade e pagamento de salários, em vez de “equipar UTIs e criar hospitais de campanha”.
Os Estados contestam as informações do presidente e alegam que Bolsonaro mistura o repasse da pandemia com as transferências constitucionais regulares que têm direito numa ação política e midiática para colocar a população contra os governadores. Há listas em que até os valores do auxílio emergencial, um benefício do governo federal aos mais vulneráveis, entram na conta do repasse de recursos da União aos Estados.
Os secretários de Fazenda dos Estados prometem apresentar nos próximos dias uma tabela com as informações dos recursos da pandemia repassados pelo governo federal. O levantamento está sendo feito pelo Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz).“Não é recurso da União é dos entes. Quando misturam esses números é uma maneira de politizar um assunto que é técnico”, afirmou Rafael Fonteles, secretário da Fazenda do Piauí.
Segundo ele, os números mostram que, na maioria dos Estados, os recursos utilizados pelos próprios governadores para o combate na pandemia superam em muito o dinheiro repassado pela União. “Tem Estado que recebeu R$ 300 milhões e gastou do Tesouro estadual R$ 600 milhões”, disse. “Claro que temos que tentar fazer o debate técnico, mas, na prática, o debate fica na superficialidade das redes sociais.”
Para o professor da UNB Roberto Bocaccio, especialista em administração pública, é pertinente a decisão de não vincular todos os repasses, uma vez que todos perderam receitas, mas cada Estado ou cidade tem demandas e prioridades específicas. “Depende de onde o calo está apertando mais. A situação de cada Estado e município é muito diferente da outra. Tem Estados que não têm problemas de falta de leitos, tem Estados com bons serviços de atendimento. De fato, em alguns casos, a dificuldade era de ordem geral, por causa da queda de arrecadação, sem dinheiro para pagar pessoal, energia elétrica ou água”.
Para os municípios foram destinados R$ 23 bilhões de socorro financeiro, também com base na lei complementar. O secretário-executivo da Frente Nacional dos Prefeitos, Gilberto Perre, reforça que os repasses não carimbados eram necessários. “O município tem muitas responsabilidades que podem não estar relacionadas ao atendimento em si da pessoa em hospital, à compra de remédios. Mas, para a cidade continuar funcionando, são fundamentais. Era para isso que faltava dinheiro. Houve comportamento atípico da receita”, explicou Perre.
Transparência
Não há qualquer ilegalidade em usar os recursos não vinculados, do socorro financeiro, para ações não restritas à pandemia. Por outro lado, ao “misturar” o dinheiro não carimbado da lei do auxílio com os caixas dos Estados, esse detalhamento não consta nos painéis de transparência criados pelos Estados para apresentar o balanço de entradas e saídas para combate à covid. Quando procurados, apenas um terço dos Estados enviou as informações solicitadas à reportagem.
O secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, alerta para os riscos da falta de transparência nesse contexto. Em razão do volume gigantesco de recursos que a União já gastou até aqui, ele acredita que o País pode estar diante de desvios históricos.
“A transparência é inversamente proporcional aos desvios. Quanto maior a transparência, menor os desvios. Provavelmente, estamos diante do maior desvio de recursos públicos da história do País. Até o momento, em 2020 e 2021, a União gastou R$ 539,7 bilhões, segundo o Tesouro. Se imaginarmos um desvio de 3% teríamos R$ 16,2 bilhões desviados. A Lava Jato, em cinco anos, recuperou cerca de R$ 4,5 bilhões e tem a perspectiva de conseguir a devolução de aproximadamente R$ 14 bilhões”, afirmou.
Muitos dos números apresentados pelo presidente são alimentados pela equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. No fim de fevereiro, após reagir contra novas medidas de isolamento social tomadas por Estados e municípios e desafiar governadores a pagarem o novo auxílio emergencial, o presidente se reuniu com a cúpula do Congresso e ministros do governo no Palácio da Alvorada. Na época, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Ministério da Saúde pagasse leitos de UTI em São Paulo, Maranhão e Bahia. Guedes, então, apresentou dados ao presidente que mostravam um crescimento de 70% da disponibilidade de caixa dos Estados com as transferências de recursos do governo federal para os governadores em 2020.
Fonte Agência Brasil
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