
Dentro do data center: a máquina colossal que nunca pode parar
Segundo o Ministério de Minas e Energia, a Casa dos Ventos planeja construir o Datacenter Santa Luzia em Campo Redondo, Rio Grande do Norte, uma cidade que decretou emergência por seca e estiagem em 14 dos últimos 21 anos.
Quando a gente fala em "nuvem de dados" do nosso Google Drive, parece que tudo é leve e imaterial, não é? Mas a realidade por trás do mundo digital é bem mais pesada e concreta. Essa tal "nuvem" é, na verdade, uma infraestrutura colossal e extrativista, e o centro de toda essa materialidade invisível são os data centers.
Pense neles como galpões gigantescos, ou prédios que abrigam supercomputadores e que funcionam 24 horas por dia. Longe de serem apenas depósitos técnicos, os data centers são zonas logísticas de alta complexidade dedicadas a organizar os fluxos de dados, processar algoritmos e garantir a sustentação de todas aquelas plataformas que operam globalmente. Ou seja, eles são essenciais para o armazenamento e processamento de todas as informações que usamos na internet.
Para manter esses supercomputadores rodando sem parar, o data center depende de uma base material intensa. Eles são sugadores de uma enorme quantidade de energia e água, recursos que são vitais para evitar o superaquecimento das máquinas. À medida que tecnologias como a inteligência artificial crescem, a demanda por essas instalações e seus recursos também aumenta.
Curtailment: o fantasma que assombra o futuro da energia eólica e o possível porquê do datacenter em Campo Redondo
A Casa dos Ventos, por exemplo, investe pesado em energia limpa, como a eólica, mas o setor elétrico tem um problema: às vezes, a produção é tanta que ela dá prejuízo e precisa ser jogada fora. Esse é o curtailment, que, na prática, é o corte compulsório da geração de energia.
O grande X da questão é que a oferta de energia "limpa" (especialmente a eólica) é enorme, mas a demanda nem sempre é estável ou está no lugar certo. O curtailment acontece porque não existe demanda suficiente para absorver toda a energia que está sendo gerada.
O Brasil, em particular, desperdiça uma parcela significativa dessa energia. No Nordeste, onde a geração renovável é farta, mais de 20% da energia gerada acaba sendo desligada por excesso de oferta ou porque falta capacidade nos sistemas de transmissão para escoar essa energia para onde ela é consumida, segundo relatório do BTG Pactual. O Nordeste, aliás, é o local com o maior excesso de oferta. É aí que o data center surge como um potencial herói (ou vilão, dependendo do ponto de vista).
Data centers são cargas que consomem muita eletricidade (cargas eletrointensivas). O setor de energia defende que colocar data centers (e outras cargas pesadas) justamente nas regiões onde tem sobra de energia é a solução para mitigar o curtailment. A ideia é dar um uso melhor para a infraestrutura de geração que já está instalada.
Seca para uns, desperdício para outros: bigtechs e sua fome insaciável por água e energia
Data centers são máquinas que transformam ecossistemas em verdadeiras zonas de sacrifício, porque são sugadores de uma enorme quantidade de energia e, principalmente, de água. O maior drama é a água, recurso essencial para o resfriamento. As máquinas poderosíssimas precisam ser mantidas sempre resfriadas para não superaquecerem. E é aí que o recurso hídrico entra, mas ele não é usado e devolvido: grande parte se perde na evaporação ou na pulverização. Diferente de um uso residencial, os data centers chegam a consumir (perder) de 60% a 80% da água que retiram. O uso dela é vital e tende a crescer: globalmente, a demanda por IA deve usar entre 4,2 e 6,6 bilhões de metros cúbicos de água até 2027. O problema fica ainda mais urgente quando essas infraestruturas são instaladas em territórios historicamente vulnerabilizados.
O caso mais emblemático é o projeto do mega data center do TikTok no Ceará, na cidade de Caucaia. A cidade tem um histórico de seca e escassez hídrica crônica, tendo vivido em situação de emergência por seca em 16 dos últimos 21 anos (entre 2003 e 2024). Para o resfriamento, a Casa dos Ventos anunciou que o data center utilizará um sistema em circuito fechado, que desperdiça menos água do que os modelos convencionais. Ainda assim, a previsão é de um gasto de 30 mil litros de água por dia para manter as máquinas em funcionamento. Enquanto comunidades rurais dependem de caminhões-pipa e cisternas para viver, esse consumo mostra como a lógica do lucro se sobrepõe à lógica da vida.
A mesma lógica se repete em outros estados. Pelo menos cinco projetos de data centers em análise estão em cidades que sofreram sistematicamente com falta d'água. É o caso de Campo Redondo, no Rio Grande do Norte, que decretou emergência por seca e estiagem em 14 dos últimos 21 anos.
Data center da Casa dos Ventos em Caucaia, no Ceará, consumirá em um ano, a mesma quantidade de energia que Campo Redondo consumiria em cerca de 250 anos, segundo The Intercept Brasil
No exterior, a resistência também é por causa da água. No Chile, ativistas barraram um projeto do Google após descobrirem que ele estava autorizado a extrair mais de 7 bilhões de litros de água por ano.
Sem freios: a lacuna legal que permite que grandes empreendimentos ignorem o meio ambiente no Ceará
Quando a gente fala em atrair esses empreendimentos, os governos parecem dispor de uma imensa boa vontade para as grandes empresas, ignorando os avisos ambientais. A expansão dos data centers no Brasil está acontecendo sem que exista uma lei clara que diga como esses projetos gigantes devem ser licenciados, e isso vira uma "lacuna conveniente" para afrouxar as regras.
O caso mais polêmico é o megadata center do TikTok (que está no nome da Casa dos Ventos) em Caucaia. Para você entender o nível desse descaso, a Superintendência de Meio Ambiente do Ceará (Semace) classificou o projeto do data center como se fosse uma simples "construção civil".
Na prática, isso significa que um empreendimento que gastará uma energia absurda no Nordeste tem o mesmo critério de licenciamento ambiental que um parque de vaquejada ou um kartódromo. Como a classificação foi de "baixo impacto ambiental", a empresa foi dispensada de apresentar estudos aprofundados dos efeitos que o projeto terá na região, como os Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). Eles só precisaram apresentar um relatório simplificado (RAS) ao órgão estadual.
Essa pressa em liberar a obra ignora completamente quem vive no entorno. Os Indígenas Anacé, que estão perto do local em Caucaia, denunciam que seu direito à consulta prévia, livre e informada — garantido em convenções internacionais — não foi respeitado pela Semace. O órgão ambiental estadual se defendeu dizendo que não consultou os Anacé porque a terra ainda não é demarcada. No entanto, tanto especialistas quanto a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) afirmam que a consulta deve ser feita de qualquer maneira, mesmo sem a homologação oficial da terra.
O motivo de toda essa confusão é simples: o Ministério do Meio Ambiente (MMA) não tem nenhuma regra, norma ou procedimento específico para data centers. Sem essa referência nacional, os estados ficam à vontade para criar suas próprias regras — ou simplesmente flexibilizá-las para atrair investimentos, independentemente dos impactos ambientais. Por exemplo, o IDEMA, órgão ambiental do Rio Grande do Norte, já admitiu que não realiza licenciamento de data centers e está formando um grupo de trabalho para construir uma legislação do zero para essa nova atividade.
O resultado é que o Brasil se torna um "paraíso" para as big techs, oferecendo incentivos e, principalmente, silêncio regulatório em troca de promessas de desenvolvimento.
Colonialismo digital? Data centers prometem emprego, mas deixam comunidades à margem
O data center não é só um prédio de computadores; ele é o epicentro de uma nova lógica de dependência estrutural e dominação transnacional. O Brasil, junto com o Chile, tem sido visto como um "paraíso" para data centers. Por quê? Porque oferecemos três coisas essenciais: recursos abundantes (como energia e água), estruturas regulatórias frágeis e governos dispostos a dar incentivos e subordinar seus marcos legais à lógica das grandes corporações.
Essa lógica é a de um colonialismo reconfigurado. A extração não é mais só de mercadoria física, mas de dados, comportamento e infraestrutura. E o drama é que a gente entra com o território, a água e a eletricidade, enquanto o controle sobre os dados e o valor estratégico da informação permanece concentrado fora das nossas fronteiras.
Essa forma de agir centraliza o poder econômico e tecnológico nos centros mais ricos, subordinando o Sul global. No Brasil, esse fenômeno é intenso: o governo oferece recursos naturais, renúncia fiscal e silêncio regulatório em troca de uma promessa vaga de desenvolvimento.
O resultado dessa conta é cruel: os custos ambientais, especialmente o uso intensivo de água para resfriamento, recaem sobre as comunidades que já são historicamente precarizadas. Isso cria um padrão de necroexportação digital: os fluxos de informação são globais, mas os custos ecológicos e sociais são locais, concentrados em territórios empobrecidos.
Essa assimetria é o coração do problema: as empresas se beneficiam de isenções, terrenos públicos e infraestrutura subsidiada, enquanto os impactos ambientais são socializados (ou seja, a comunidade é quem paga a conta). Para justificar todo esse "pacote de bondades" dado às big techs, o discurso oficial promete empregos, modernização e conexão. O governo federal, por exemplo, chegou a falar em destravar trilhões em investimentos.
Mas essa promessa de emprego é uma grande ilusão. A maioria dos empregos gerados pela operação de um data center é altamente especializada, escassa, volátil e, muitas vezes, terceirizada. O impacto positivo nas comunidades vizinhas é, portanto, bem limitado. Um exemplo prático mostra essa diferença: um projeto nos Estados Unidos (Stargate, Texas) precisou de 1.500 pessoas para a construção, mas só 100 seriam necessárias para a operação depois de pronto.
Além disso, como o governo está oferecendo isenções fiscais e tributárias, também não haverá uma arrecadação significativa para os municípios e estados a partir desses empreendimentos. Ou seja, o setor privado leva o lucro da informação, a comunidade fica com os danos ambientais e o Estado, com os custos públicos crescentes para reparar os prejuízos socioambientais impagáveis.
Cultura ou propaganda? A iniciativa ‘Ventos do Saber’ sob suspeita de greenwashing
A indústria de energia eólica tem se mostrado muito ativa na área social, mas as ações de caridade podem levantar uma bandeira amarela quando a mesma empresa está envolvida em megaprojetos com alto impacto ambiental e social.
Estamos falando da iniciativa "Bibliotecas Ventos do Saber", um projeto que, desde 2019, tem a missão de revitalizar e dinamizar bibliotecas em escolas públicas, muitas delas em distritos com alto Índice de Vulnerabilidade Social. O projeto é patrocinado pela Vestas e pela Aeris, via Lei Federal de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet.
O que chama atenção é que a iniciativa atua justamente nas regiões onde a infraestrutura digital pesada está chegando. O projeto está se expandindo para contemplar a Escola Aída Ramalho Cortez em Campo Redondo, no Rio Grande do Norte, uma das cidades que já sofre sistematicamente com falta d’água e onde a Casa dos Ventos (envolvida em data centers) tem projetos em análise.
Em Caucaia, no Ceará, onde o megadata center do TikTok/Casa dos Ventos está sendo instalado, o Ventos do Saber já revitalizou bibliotecas em escolas públicas. E o ponto mais delicado é que, em 2022, eles contemplaram três escolas indígenas, incluindo a Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé, que fica na Reserva Indígena Taba dos Anacé.

Menino indígena mexendo num computador da Biblioteca Ventos do Saber em Caucaia, Ceará. Reprodução: Ventos do Saber
Para inaugurar esses espaços, que ganharam computadores, livros e TV, a escola Anacé teve a presença de contadores de história. Acontece que o cacique da tribo, Roberto Anacé, não está nem um pouco contente com o data center que está invadindo o território. Mesmo com a doação para a escola, ele está na linha de frente da mobilização, denunciando que o direito à consulta prévia, livre e informada de seu povo não foi respeitado. Em entrevista, o Cacique Roberto Anacé questionou diretamente a instalação do data center nas proximidades, dizendo:
“Se é tão pouca água que eles vão usar, por que não coloca [o data center] lá distante? Por que na beirada do rio? Por que em cima do território indígena?”

Ato contra o Data center em Caucaia, Ceará. Reprodução: Iago Barreto Soares/Intercept.
Essa discrepância entre o investimento social pontual (as bibliotecas) em regiões com projetos sobre data center em andamento, e o impacto ambiental massivo do data center (consumo absurdo de água e energia em áreas de seca) levanta a forte suspeita de greenwashing.
Greenwashing (ou "banho verde") é o termo usado para quando uma organização se apropria injustificadamente de virtudes ambientalistas através do marketing para criar uma imagem positiva, enquanto esconde ou desvia o foco dos impactos ambientais negativos que gera. É o que se chama de "Produtos verdes x empresa suja", onde uma empresa foca em um atributo positivo (a biblioteca/cultura) para mascarar um problema muito maior.
Um resumo sobre a situação do Data Center em Campo Redondo
O projeto de data center de Campo Redondo, no Rio Grande do Norte, está sendo tocado pela empresa Casa dos Ventos S.A.. O empreendimento, formalmente chamado Data Center Santa Luzia, é um dos vários projetos de grande porte que entraram na mira do governo e das grandes empresas de tecnologia. No entanto, a localização do projeto é um ponto crítico: Campo Redondo é uma cidade que historicamente sofre com a escassez de água, tendo decretado emergência por seca e estiagem em 14 dos últimos 21 anos.
O projeto está em andamento na esfera federal, onde a Casa dos Ventos abriu o processo (nº 48340.003307/2024-13) junto ao Ministério de Minas e Energia (MME) para garantir o acesso à Rede Básica de Energia do Sistema Interligado Nacional (SIN). Isso é necessário porque data centers são grandes consumidores de energia elétrica.
Mas a coisa não correu exatamente como o planejado: o projeto passou por uma redução substancial na demanda de energia projetada. Em julho de 2025, o MME reconheceu a alteração na carga e teve que solicitar à Empresa de Pesquisa Energética (EPE) a atualização de toda a base de dados de estudos e a reavaliação das alternativas de conexão.
No que diz respeito à parte ambiental e regulatória, a situação do projeto em Campo Redondo é incerta. O IBAMA informou que o licenciamento ambiental do data center não é de sua responsabilidade.
No âmbito estadual, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SEDEC) do Rio Grande do Norte está discutindo a instalação de data centers através de um grupo de estudos. Contudo, o órgão ambiental do estado, o IDEMA, ainda está construindo o arcabouço legal para licenciar essa nova atividade e, portanto, não há processos de licenciamento em andamento no estado. O Governo do RN também esclareceu que não celebrou nenhum convênio, parceria ou acordo formal com a Casa dos Ventos ou quaisquer outras empresas para a instalação do data center até o momento.
Por: Movimento Somos Maioria (@somosmaioria.cr)
Baseado na série jornalística "A Boiada da IA" e na matéria "Como data centers repetem a lógica colonial digital no Brasil" do The Intercept Brasil. Clique e acesse.
Fonte Movimento Somos Maioria
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